teoria do v
A base de cada sociedade humana é o processo de trabalho, seres humanos cooperando entre sipara fazer uso das forças da natureza e, portanto, para satisfazer suas necessidades. O produtodo trabalho deve, antes de tudo, responder a algumas necessidades humanas. Deve, em outraspalavras, ser útil. Marx chama-o valor de uso. Seu valor se assenta primeiro e principalmente emser útil para alguém.
A necessidade satisfeita por um valor de uso não precisa ser uma necessidade física. Um livro éum valor de uso, porque pessoas necessitam ler. Igualmente, as necessidades que os valores deuso satisfazem podem ser para alcançar propósitos vis. O fuzil de um assassino ou o cassetetede um policial é um valor de uso tanto quanto uma lata de ervilhas ou o bisturi de um cirurgião.
Sob o capitalismo, todavia, os produtos do trabalho tomam a forma de mercadorias. Umamercadoria, como assinala Adam Smith, não tem simplesmente um valor de uso. Mercadoriassão feitas, não para serem consumidas diretamente, mas para serem vendidas no mercado. Sãoproduzidas para serem trocadas. Desse modo cada mercadoria tem um valor de troca, "arelação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de um tipo são trocados por valores deuso de um outro tipo". (O Capital vol. .1, doravante C1 ) Assim, o valor de troca de uma camisapoderá ser uma centena de lata de ervilhas.
Valores de uso e valores de troca são muito diferentes uns dos outros. Para tomar um exemplo de Adam Smith, o ar é algo de um valor de uso quase infinito aos seres humanos, já que sem ele nósmorreríamos, mas que não possui um valor de troca. Os diamantes, por outro lado, são de muitopouca utilidade, mas tem um valor de troca muito elevado.
Mais ainda, um valor de uso tem que satisfazer algumas necessidades humanas específicas. Sevocê tem fome, um livro não poderá satisfazê-lo. Em contraste, o valor de troca de umamercadoria é simplesmente o montante pelo qual será trocado por outras mercadorias. Os valoresde troca refletem mais o que as mercadorias têm em comum entre si, do que suas qualidadesespecíficas. Um pão pode ser trocado por um abridor de latas, seja diretamente ou por meio dedinheiro, mesmo que suas utilidades sejam muito diferentes. O que é isso que eles têm emcomum, que permite a ocorrência dessa troca?
A resposta de Marx é que todas as mercadorias tem um valor, do qual o valor de troca ésimplesmente o seu reflexo. Esse valor representa o custo de produção de uma mercadoria àsociedade. Pelo fato de que a força de trabalho é a força motriz da produção, esse custo só podeser medido pela quantidade de trabalho que foi devotada à mercadoria.
Mas por trabalho Marx não se refere ao tipo particular de trabalho envolvido em, digamos, assarum pão ou manufaturar um abridor de latas. Esse trabalho real, concreto, como disse Marx, évariado e complexo demais para nos fornecer a medida de valor que necessitamos. Para encontraressa medida nós devemos abstrair o trabalho de sua forma concreta. Marx escreve: "Portanto, umvalor de uso ou um bem possui valor, apenas, porque nele está objetivado ou materializadotrabalho humano abstrato". (C1, p 47)
Assim, o trabalho tem um "caráter dual":
"Todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho do homem no sentido fisiológico, e nessa qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstrato gera o valor damercadoria. Todo trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho do homem sob formaespecificamente adequada a um fim, e nessa qualidade de trabalho humano concreto útil produzvalores de uso." (Cl, p. 53)
Marx descreveu esse caráter dual do trabalho como um dos "melhores pontos em meu livro" (Correspondência Seleta). Foi aqui que a teoria de Marx separou-se das teorias de Ricardo e doseconomistas políticos. Marx criticou Ricardo por se concentrar quase que exclusivamente natentativa de achar uma fórmula precisa para determinar o valor de troca das mercadorias. Elesqueriam, é claro, encontrar modos de prever os preços de mercado.
"O erro de Ricardo é que ele está interessado somente na magnitude do valor... O que Ricardonão investiga é a forma específica na qual o trabalho se manifesta como o elemento comum nasmercadorias", escreveu Marx. (Teorias da Mais-Valia (doravante TMV), tomo III)
Marx não estava interessado especificamente em preços de mercado. Sua meta era entender ocapitalismo como uma forma de sociedade historicamente específica, descobrir o que faz ocapitalismo diferente das formas anteriores de sociedade, e que contradições levariam à sua futuratransformação. Marx não queria saber em que medida o trabalho formava o valor de troca dasmercadorias, mas em que forma o trabalho realizava essa função e porque sob o capitalismo aprodução era de mercadorias para o mercado e não de produtos para uso direto como nassociedades anteriores.
O caráter dual do trabalho é crucial para responder esta questão, porque o trabalho é umaatividade social e cooperativa. Isto é verdade não apenas no que toca a tipos particulares detrabalho, mas para a sociedade como um todo. O trabalho de cada indivíduo ou grupo deindivíduos é trabalho social no sentido de que ele contribui para as necessidades da sociedade. Essas necessidades exigem todo o tipo de diferentes produtos - não só vários tipos de alimentos,mas também vestuário, meios de transporte, instrumentos necessários na produção e assim pordiante. Isto quer dizer que é necessário que diferentes tipos de trabalho útil sejam levados a cabo. Se cada um produzisse somente um tipo de produto então logo a sociedade entraria em colapso.
Cada sociedade, portanto, necessita de alguns meios para distribuir o trabalho social entrediferentes atividades produtivas. "Essa necessidade da distribuição de trabalho social emproporções definidas não pode possivelmente ser suprimida por uma forma particular deprodução social", escreve Marx (Selected Correspondence, doravante SC). Mas há uma diferençafundamental entre o capitalismo e outros modos de produção. O capitalismo não possuimecanismos através dos quais a sociedade pode decidir coletivamente o quanto de seu trabalhoserá direcionado a tarefas particulares.
Para entender porque é assim, devemos olhar para os modos de produção pré-capitalistas, onde oobjetivo da atividade econômica era primeiramente a produção de valores de uso, e cadacomunidade podia satisfazer todas ou a maior parte de suas necessidades a partir do trabalho deseus membros. Assim, na
"indústria rural patriarcal de uma família camponesa que produz para seu próprio uso cereais,gado, fio, linho, peças de roupa, etc.(...) diferenças de sexo e de idade e as condições naturais dotrabalho que mudam com as estações do ano regulam sua distribuição dentro da família e otempo de trabalho dos membros individuais da família" (C1, 74)
A distribuição do trabalho é regulada coletivamente mesmo em sociedades pré-capitalistas ondeexistem exploração e classes. Assim, no feudalismo,
"o trabalho e os produtos (...) entram na engrenagem social como serviços e pagamentos innatura. (...) Portanto, como quer que se julguem as máscaras que os homens ao se defrontaremaqui, vestem, as relações sociais entre as pessoas em seus trabalhos aparecem em qualquercaso como suas próprias relações pessoais, e não são disfarçadas em relações sociais dascoisas, dos produtos de trabalho" (C1, 74)
No caso do escravismo e do feudalismo, ambos modos de produção baseados na exploração declasse, a massa da produção está voltada inteiramente para satisfazer as necessidades dosprodutores e da classe exploradora. A questão principal não é o que é produzido, mas sim adivisão do produto social entre exploradores e explorados.
No capitalismo as coisas são muito diferentes. O desenvolvimento da divisão de trabalho significaque a produção em cada local de trabalho é agora altamente especializada e separada dos outroslocais de trabalho: cada produtor não pode satisfazer suas necessidades a partir de sua própriaprodução. Um trabalhador numa fábrica de abridores de latas não pode comer abridores de latas.Para viver ele deve vendê-los a outros. Os produtores são, portanto, interdependentes em doissentidos: eles precisam cada um dos produtos dos outros, mas eles também precisam uns dosoutros como compradores de seus produtos para que eles possam obter o dinheiro com o qualcompram aquilo que precisam.
Este sistema Marx chama de produção generalizada de mercadoria. Os produtores estão ligados entre si somente pelo intercâmbio de seus produtos:
"Objetos de uso se tornam mercadorias apenas por serem produtos de trabalhos privados, exercidos independentemente uns dos outros. O complexo desses trabalhos privados forma otrabalho social total. Como os produtores somente entram em contato social mediante a troca deseus produtos de trabalho, as características especificamente sociais de seus trabalhos privadossó aparecem dentro dessa troca. Em outras palavras, os trabalhos privados só atuam, de fato,como membros do trabalho social total por meio das relações que a troca estabelece entre osprodutos do trabalho e, por meio dos mesmos, entre os produtores".(C1,71)
Até aqui, o trabalho social concreto era diretamente trabalho social. Onde a produção era para ouso, para satisfazer algumas necessidades específicas, seu papel social era óbvio. Onde aprodução é destinada para a troca, contudo, não há uma conexão necessária entre o trabalho útilrealizado por um produtor particular e as necessidades da sociedade. Só podemos descobrir, porexemplo, se os produtos de uma fábrica específica atendem algumas necessidades sociaisapenas depois de eles terem sido colocados à venda no mercado. Se ninguém quiser compraresses bens, então o trabalho que os produziu não era trabalho social.
Há um segundo aspecto no qual há uma diferença entre o trabalho social e privado no capitalismo.Fabricantes de um mesmo produto irão competir pelo mesmo mercado. Seu relativo sucessodependerá em como possam vender seus produtos por um menor preço. Isso implica emaumentar a produtividade do trabalho: "Genericamente, quanto maior a força produtiva do trabalho,tanto menor o tempo de trabalho exigido na produção de um artigo, tanto menor a massa detrabalho nele cristalizado, tanto menor o seu valor", escreve Marx (C1, 49).
A pressão da concorrência força os produtores a adotarem métodos de produção similares aos dos seus rivais, ou se vêem forçados a rebaixarem seus preços para poderem competir. Consequentemente o valor das mercadorias é determinado não pela quantidade total de trabalhousada para produzi-las, mas sim pelo tempo de trabalho socialmente necessário, isto é, otempo de trabalho "requerido para produzir um valor de uso qualquer, nas condições dadas deprodução socialmente normais, e com o grau social médio de habilidade e de intensidade detrabalho" (C1, 48). Um produtor ineficiente que usa mais do que o trabalho socialmente necessáriopara produzir algo achará que o preço que ele obtém pela mercadoria não compensará o seutrabalho extra. Somente o trabalho socialmente necessário é trabalho social.
Trabalho social abstrato é assim não apenas um conceito, algo que existe somente nas nossasmentes. Ele domina a vida das pessoas. A menos que os produtores sejam capazes de alcançaras "condições normais de produção" eles se verão forçados a sair fora do negócio. Mas isso não étudo. Nós vimos que o trabalho privado útil somente se torna trabalho social uma vez que seuproduto tenha sido vendido. Mas para ocorrer a troca deve haver algum modo de aferir o quanto detrabalho socialmente necessário está contido em cada mercadoria. A sociedade não pode fazerisso coletivamente, porque o capitalismo é um sistema no qual os produtores relacionam-se unscom os outros somente através de seus produtos.
A solução é que uma mercadoria assuma o papel de equivalente universal, em relação ao qual osvalores de todas as outras mercadorias possam ser mensuradas. Quando uma mercadoriaparticular fixa-se no papel de equivalente universal, ela se torna dinheiro. E, escreve Marx, "arepresentação da mercadoria enquanto dinheiro implica (...) que as diferentes magnitudes de valores-mercadoria (...) estão todas expressas em uma forma na qual existem como a corporificação de trabalho social" (TMV).
Assim o capitalismo é um sistema econômico no qual os produtores individuais não sabem deantemão se os seus produtos atenderão uma necessidade social. Eles podem descobrir somentetentando vender esses produtos como mercadorias no mercado. A concorrência entre produtoresque procuram tomar mercados vendendo a preços mais baratos reduz os seus diferentestrabalhos a uma medida, trabalho social abstrato corporificado em dinheiro. Onde a oferta de umamercadoria excede a sua demanda, seu preço cairá, e os produtores irão mudar para outrasatividades econômicas mais lucrativas. É desse modo, e somente indiretamente, que o trabalhosocial é distribuído entre diferentes ramos de produção.
A análise marxista do valor está, portanto, direcionada ao que faz do capitalismo uma forma deprodução social única. O seu foco é "a real estrutura interna das relações burguesas deprodução". Seu propósito é mostrar que "como valores, as mercadorias são magnitudes sociais, (...) relações entre homens na sua atividade produtiva (...) Onde o trabalho é comunal as relaçõesentre homens em sua produção social não se manifestam como "valores" de coisas"(TMV).
Assim que O Capital foi publicado, economistas burgueses objetaram que a abordagem do valorfeita por Marx no começo do volume I não prova que as mercadorias são realmente trocadas emproporção ao tempo de trabalho socialmente necessário exigido para produzi-las. Eles têm continuado com essa objeção até os dias de hoje. Marx comentou acerca de um desses críticos:
"O desafortunado camarada não vê que, mesmo se não houvesse um capítulo sobre "valor" emmeu livro a análise das reais relações que eu dou conteriam a prova e a demonstração da realrelação-valor (...)
A ciência consiste precisamente em demonstrar de que maneira a lei do valor se afirma. Assim sealguém quiser "explicar" logo de início todos os fenômenos que aparentemente contradizem a lei,ele deve proporcionar a ciência antes da ciência." (SC)
Todo O Capital é uma prova da teoria do valor-trabalho. Marx considerava que o método científico correto era o de "ascender do abstrato ao concreto". Ele começa por estabelecer a teoria do valor-trabalho na forma bastante abstrata, tal como a consideramos até agora. Mas este é somente oponto de partida de sua análise. Ele avança passo a passo para mostrar como o comportamento complexo e freqüentemente caótico da economia capitalista pode ser entendido a partir da teoriado valor-trabalho, e somente a partir dela.